segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amorosidade - Adenáuer

“Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” Mateus, 5:7.

Desde cedo, logo na adolescência, ao entrar em contato com o Espiritismo, vi que a reencarnação não deveria ser encarada como um mecanismo punitivo da evolução, mas uma forma educativa de fazer o Espírito evoluir. Vi também, diante do testemunho de várias entidades espirituais, que as expiações não ocorrem na mesma medida das atitudes equivocadas do passado. Elas sempre se dão de forma mais amena que a atitude anterior. A lei de Causa e Efeito, da Física Clássica, funciona de forma diferente para o Espírito, quando o amor entra em cena. O motivo é a misericórdia divina. Os misericordiosos são aqueles bem-aventurados por estarem seguindo uma lei de Deus: a de amor.

Como isso funciona do ponto de vista psicológico? A misericórdia é semelhante a amorosidade, pois permite ao Espírito vivenciar de forma recompensadora a lei de amor. A misericórdia é a vivência do amor de Deus nas relações com as pessoas, principalmente com as que se encontram emocionalmente desajustadas. Agir com misericórdia é colocar a mente em estado de doação da energia do amor.

Esse estado inibe a ação de ataques psíquicos externos, atraídos pelos nossos desequilíbrios internos. É uma proteção às obsessões, comuns a todos que nos encontramos encarnados. As obsessões são agressões psíquicas decorrentes da existência de complexos no inconsciente. São eles que possibilitam as influências espirituais, as quais nem sempre conseguimos evitar.

A misericórdia, quando acionada pelo indivíduo, permite a manifestação do Self, em lugar dos atributos e desejos do ego. O Espírito consegue atuar de forma mais direta, mais organizada e harmoniosa, sem a interferência do ego.

Nesse mesmo sentido, pode-se perceber que as disposições psicológicas alcançadas pela prática da mensagem espírita colocam o indivíduo em condições de manifestar as qualidades já alicerçadas pelo Espírito, evitando as influências dos núcleos arquetípicos oriundos das vidas passadas, que se encontram interferindo em suas relações com o mundo.

O Cristo ao afirmar  “Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho,....” , convida-nos, referindo-se à necessidade de apaziguarmos nosso mundo interior face aos complexos e projeções que fazemos, a alterar nosso estado psíquico. Logicamente somos levados a pensar que o convite feito é para buscarmos tão somente uma relação de boa vizinhança com as pessoas, porém  cremos que a acepção tem um alcance maior. Não fazer inimigos é uma arte, porém,  podese não tê-los e, no entanto, ser atormentado. O convite do Cristo vai além das circunstâncias externas indo diretamente ao mundo das nossas imperfeições internas, muitas  vezes, inconscientes. Não basta não ter inimigos externos, é preciso desfazer as inimizades internas, inclusive aquelas pessoas das quais não gostamos, e que não sabem disso.
                                               
O grande adversário que temos está sempre conosco, mora e dorme constantemente em nós. Ele se apresenta como nossas culpas, nossos complexos, nossa sombra, nossas projeções negativas, e como o grande ser desconhecido que somos. O inimigo mora dentro de nós, embora teimamos em acreditar que são aqueles que se interpõem em nosso caminho, contrariando-nos. Os inimigos externos que encontramos geralmente nos servem para sinalizar aqueles pontos obscuros em nós, dificilmente percebidos fora da presença deles. Geralmente apontamos nos outros os erros que existem em nós e que não os percebemos.

Para nos reconciliarmos com esse adversário interno são necessários alguns passos.

Primeiro:  confessar-se a si mesmo, isto é, admitir suas próprias imperfeições e dificuldades internas. É
vasculhar a própria vida, suas emoções, seus pensamentos e seus atos, identificando os próprios equívocos. É admitir seu próprio lado negativo, seus limites e incapacidades. É reconhecer suas imperfeições sem projetá-las nos outros. Embora se deva ter uma boa imagem de si mesmo, não se deve, no entanto, distanciá-la da personalidade que se é. A imagem real, que contém os aspectos considerados negativos, não deve, porém, prevalecer sobre a imagem positiva, bem como sobre a que se pretende ter de si mesmo. É não negar a si mesmo, assumindo totalmente as responsabilidades quando cometer atos equivocados.

Segundo:  confessar-se ao próximo, isto é, dividir com alguém o peso da culpa, relatando os atos equivocados cometidos e que ainda estejam atormentando a consciência. Muitas vezes, o equívoco cometido não é tão grave como tem  parecido. É assumir perante um outro a sua verdadeira personalidade, buscando a transparência no agir. É não camuflar a vida, procurando conciliar o agir com o pensar e com o sentir. Na confissão ao próximo deve-se fazer a escolha certa sobre com quem se fala, a fim de não agredir quem ouve, não ser tripudiado ou influenciar-lhe a conduta. Confessar-se espontaneamente e de forma a quebrar a obrigação em seguir um modelo de atuação coletivo e rígido. Há quem, por força da incapacidade em se confessar, viva a vida de acordo com as expectativas criadas pelos outros, ou seja, viva a vida ditada pelas exigências externas, coletivas, abdicando da vivência da própria singularidade. E o faz tão inconsciente que acredita estar agindo de acordo com a sua escolha pessoal.

Todos temos um adversário interior. Uma soma de personalidades construídas nas encarnações pregressas, cujos resíduos se agrupam e ainda agem dentro de nós sem que lhes voltemos a atenção. São  egos passados que deixam suas marcas perispirituais, exigindo reparos e dissolução. Na medida em que passamos a reconhecer esse adversário interior, a assumi-lo como componente estrutural de nós
mesmos e a gostar dele, ele perde sua condição de adversário para tornar-se aliado. Esse passo significa a mobilização da energia de um objetivo negativo para outro positivo, transformando o que parecia aversivo em algo mobilizador e catalisador de realizações superiores.

O Cristo funcionou como um autêntico psicólogo da alma humana, ao perguntar:  “Por que vês tu o argueiro  no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?”  Isso significa apontar para o aspecto psíquico, subjetivo e psicológico das atitudes. É mais do que preocupar-se com o externo. É dizer que se deve estar atento à intenção, ao que  se pensa e ao que se sente, e não julgar pelas aparências. É questionar o conteúdo psicológico do julgamento que se faz do outro. O Cristo conhecia o mecanismo das projeções e apontava para o cuidado em não se deixar vencer por elas, cujo perigo é impossibilitar o autoconhecimento.

O argueiro é um cisco e a trave é uma madeira maior, isto significa vermos o mínimo no outro e não vermos o máximo em nós. É projetar o próprio defeito em outra pessoa, fugindo de si mesmo. Geralmente essas projeções começam na  infância, quando não queremos que nossos pais descubram os equívocos que cometemos ou quando, à procura de uma identidade, fixamo-nos nas pessoas e objetos externos a fim de nos vermos. Na formação do eu, as projeções são importantes; depois de formada a identidade, elas são desnecessárias.

Ver a trave no próprio olho é caminhar para integrar a própria  sombra pessoal. Integrar é considerar parte estrutural de si mesmo e não ter medo de assumir a condição de Espírito em processo de crescimento que ainda carrega imperfeições. É não se exigir espiritualidade sem assumir sua própria humanidade. Antes de nos espiritualizarmos temos que nos humanizar.

Às vezes, preferimos enxergar os defeitos e atos inadequados do outro, para não admitir os próprios, face ao complexo inconsciente de inferioridade que temos. Para não nos apresentarmos como seres inferiores, preferimos nos mostrar superiores, como se tivéssemos um complexo de superioridade consciente. O de inferioridade se manifesta, dentre outras formas, através de  sentimentos de inadequação, menos valia, insegurança, iminência de fracasso e pessimismo, em decorrência, muitas vezes, de uma negação narcísica anterior. O de superioridade decorre de uma necessidade compensatória que se manifesta, dentre outras formas, através de desejos de reconhecimento e de poder.

Talvez o grande desafio da Vida e das relações com as pessoas seja a atitude mental de não julgar os outros de acordo com nossa medida pessoal. Sabendo dessa dificuldade de todas as pessoas, o Cristo disse: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida com que tiverdes medido vos medirão também.”  Ele sabia que a mente humana funciona como um espelho, e que o ego busca sempre comparar suas próprias disposições com as atitudes externas dos outros. Ele nos previne contra essa disposição mostrando-nos que, o que vemos nos outros faz parte de nossa personalidade. Sua segurança em convidar a que alguém atirasse uma pedra, caso estivesse completamente isento de ter cometido algum equívoco, mostra-nos a sabedoria de que era portador e o conhecimento da psicologia humana a respeito das projeções que fazemos. O que acusamos em alguém, ou notamos de negativo em sua personalidade, provavelmente seríamos  capazes de fazer ou ser da mesma forma, se estivéssemos no seu lugar. Julgamos os outros exatamente porque somos capazes de cometer os mesmos equívocos. Ninguém está livre de agir de forma inadequada diante de circunstâncias adversas. Daí por que devemos ter misericórdia para com os outros, bem como agir com tolerância diante dos equívocos de nosso próximo.

Mais do que observar os equívocos do próximo, devemos voltar nosso olhar sobre nossos pensamentos e sentimentos ocultos inadequados. Estes, sim, são fatores de perturbação e desequilíbrios e se constituem nos principais responsáveis pelo que nos ocorre na vida. Conscientizar-nos das atitudes do próximo pode ser importante para vivermos em sociedade, mas a consciência de si mesmo é o desafio para o crescimento pessoal.

O principal desafio que temos a ultrapassar no mundo é vencer a batalha que se trava em nosso íntimo, da qual ninguém está isento de atravessar.

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