terça-feira, 14 de julho de 2015

O despertar da compaixão

O despertar da compaixão


Muito se fala dela, pouco se sabe. A compaixão pode não ser exatamente o que você pensa que é: existem várias maneiras de experimentá-la, a maioria das vezes de forma surpreendente

por Liane Alves


Quando resolveu contar histórias para crianças em hospitais como voluntário da Associação Viva e Deixe Viver, o juiz desembargador Antonio Carlos Malheiros teve de superar a si mesmo. No dia escolhido para seu turno na ala de queimados de um grande hospital de São Paulo, ele colocou seu nariz de palhaço, ajeitou seu avental colorido e enfrentou a forte visão das crianças com queimaduras. Foi um grande choque. Mas em poucos minutos, porém, Malheiros já estava solto. Sabia que sua maneira de exercitar a compaixão ali era dar alegria a quem estava mergulhado no sofrimento. O que ele não podia, naquele momento, era sentir dó, piedade, “peninha”. Por isso riu, e arrancou muitos sorrisos, com as histórias que contou. Foi um verdadeiro sucesso. Quando estava quase saindo, sentiu um puxão lá embaixo no seu avental. Era um menino de uns 5 anos com o rosto quase totalmente envolto por bandagens e esparadrapos. O garoto fez um sinal para o juiz se inclinar e disse bem baixinho no seu ouvido: “Tio, pode não parecer, mas eu estou rindo...”

Aí não tem jeito, algo se desmancha no coração. Ele se torna mais tenro, mais terno. E perde sua carapaça habitual de dureza. Como não preenchê-lo de amor por aquela criança vivendo em condições tão difíceis? O sentimento da compaixão é mesmo um transbordamento amoroso. Como as lágrimas, que rolam pelos olhos por causa da emoção, ela transborda diretamente do coração, só que em direção ao mundo.


Amor e sabedoria

Compaixão é amor, sim. Mas uma espécie particular de amor, que pode ser vivenciado de diferentes maneiras. Pode ser passando por cenas como essa descrita no começo do texto. Ou exercitando a paciência, a tolerância, um estar perto em silêncio. A compaixão pode ser praticada até com socos e palavrões, como os bombeiros são obrigados a fazer quando têm de dominar pessoas em pânico para poder salvá-las. Ter compaixão é olhar para o outro e ver o que ele precisa naquele momento. Pode ser um abraço apertado, uma bronca, uma orientação, uma ajuda material. A única condição essencial é que qualquer uma dessas ações parta do coração e que corresponda ao que é preciso naquele instante. Mas compaixão, diferentemente do que nossa tradição de catolicismo lusitano pode indicar, está a léguas da pena. Quem tem pena, muitas vezes, não ama verdadeiramente.

A pergunta que se deve fazer ao sentir a compaixão nascendo dentro do peito é: “De que forma posso ajudar agora?” E a resposta depende tanto de sentimento quanto de raciocínio. “Ter compaixão significa aliar amor e sabedoria”, disse o mestre Geshe Lhakdor, um especialista em filosofia budista que esteve no Brasil. Com palavras tão simples, ele dá a chave de ouro de como se pode exercitar a compaixão. Porque é preciso sentimento, sim, mas também um certo domínio da situação e inteligência. De outra maneira, ficaríamos só chorando ao lado de quem está sofrendo. Bombeiros e salva-vidas não salvariam pessoas, enfermeiras não conseguiriam cuidar direito de seus pacientes, acompanhantes de pessoas doentes entrariam na mais profunda depressão. “Para ajudar o outro, compartilhar sua dor, é preciso estar inteiro, íntegro, e não caindo aos pedaços, emocionalmente falando”, diz a psicóloga Ana Maria Silva, que dá suporte aos contadores de histórias da Associação Viva e Deixe Viver. A entidade tem um programa rigoroso, severo na formação de seus voluntários: de 600 candidatos iniciais, podem ser aprovados apenas 60, justamente os que têm mais condições psicológicas para exercer a compaixão de forma constante e militante. Isto é, de saber avaliar o que realmente a outra pessoa precisa. Em outras palavras, é mais prudente não praticar a compaixão de maneira continuada quando ainda não foram resolvidas grandes questões internas ou, então, quando se deseja ajudar apenas para tentar suprir uma carência afetiva. “Primeiro, é necessário ajudar a si mesmo. Mais inteiro, pode-se começar a pensar em ajudar os outros de forma mais contínua e responsável”, diz.

Isso quer dizer que você vai ter de adiar para sempre esse estar próximo ao sofrimento do outro? Afinal, somos humanos, e nunca estamos totalmente resolvidos... Não, o estar bem e inteiro não pode se transformar numa desculpa ardilosa para nosso egoísmo habitual. Pontualmente, todos nós podemos estar abertos para a dor alheia. Estar ao lado de um amigo em um momento difícil, abrir a casa para um parente que precisa de apoio, participar de uma ação voluntária numa emergência, passar a noite no hospital com alguém, isso todo mundo pode fazer. Mas, para exercitar a compaixão de maneira mais continuada, precisamos, sim, estar mais preparados para poder atender a esse chamado do coração de um jeito mais preciso.


Saber como ajudar

Em seu livro Por um Fio, o médico e escritor Drauzio Varella confessa que durante muitos anos se deixou contaminar pelas reações dos doentes, sentindo-se “imobilizado” emocionalmente e incapaz de oferecer seus préstimos de médico à altura. Tudo porque não conseguia deixar de pensar no sofrimento pelo qual seus pacientes estariam passando. Com o tempo, Drauzio aprendeu a não se paralisar de angústia diante de alguém que estivesse sofrendo. Isso não ajudaria em nada o paciente.

Tem gente que sabe isso intuitivamente, sem precisar treino, como a psicóloga carioca Ana Helena Vieira, que enfrentou, durante quase um ano, um entra-e-sai de hospital por causa da doença do marido. Numa das vezes, teve de esperar por uma cirurgia que durou oito horas. Ela podia ficar roendo as unhas na sala de espera. Mas como sabia que a operação, embora demorada, não tinha grande risco, resolveu almoçar num restaurante charmoso ali por perto, assistir a um filme leve, bater perna nas imediações e voltar radiante para o pós-operatório do marido, que lhe exigiria paciência, boa disposição física e muita dedicação. “No começo, sentia culpa. Depois, sabia que sentir-me bem era fundamental para eu poder cuidar e dar a atenção devida a ele.” Quanto sofrimento inútil poderia ser jogado fora se a gente soubesse que é possível praticar a compaixão desse jeito, com tanta leveza e harmonia...

Outras pessoas precisam se autoanalisar, ou contar com terapia, antes de resolver ajudar mais sistematicamente. Foi o que aconteceu com as 15 mulheres que participam de um site com informações sobre câncer de mama. Todas elas passaram pela doença e se conheceram num grupo virtual que tratava do assunto. Ali compartilhavam suas dúvidas, medos e esperanças. Foi quando decidiram fazer um site para ajudar mulheres como elas. Só que uma coisa era desabafar e trocar impressões entre si, como faziam no grupo virtual, outra era começar tudo de novo e ajudar objetivamente, com informação qualificada, a quem passava pelo câncer. Tiveram de reavaliar a si mesmas e sua relação com a doença e estabelecer a melhor maneira de colocar a questão mais racionalmente, ainda que com muito amor. Um duro aprendizado, mas que elas exercitam voluntariamente todos os dias.

E, sim, há várias maneiras de se preparar para exercer a compaixão, até as mais controvertidas. Na antiga série de televisão M.A.S.H., o cirurgião-chefe de um acampamento hospitalar do Exército americano usava sua rebeldia e senso de humor para manter sua sanidade em meio a carnificina geral da Guerra da Coréia. Servia-se do mercado negro local para garantir o consumo de uísque entre os médicos nos horários livres, subornava oficiais para conseguir férias para seus ajudantes mais estressados, aprovava bonés e bermudas fora do uniforme para alegria dos enfermeiros. Tudo para poder suportar o calor úmido de 40 graus de uma floresta tropical, mosquitos, doenças infecciosas e atender, com compaixão, pacientes destroçados por explosivos. Condenar, quem há de?


Os cinco tipos

Mas compaixão não é uma coisa só, um sentimento inequívoco que se apresenta de apenas uma maneira. O lama budista gaúcho Padma Samten conta como se manifestam os cinco aspectos diferentes da compaixão, relacionando-os às cinco cores (ou energias) emanadas pelos budas primordiais. “Na compaixão azul, por exemplo, olhamos para quem sofre e o acolhemos com ternura”, diz ele. “E perguntamos interiormente: ‘Quais as potencialidades e qualidades escondidas nesse ser? Como ele pode desabrochar?’ E o ajudamos a seguir essa direção”, explica.

A compaixão amarela está ligada à generosidade e à riqueza. “Então, quando vamos ajudar alguém, nós podemos não somente ouvi-lo e entendê-lo, como também podemos fazer algo a mais, dando oportunidades ou oferecendo meios materiais para que a pessoa possa sair daquela situação difícil”, afirma o lama. É uma ajuda prática, que pode envolver dinheiro, comida ou trabalho.

Na compaixão vermelha, nossa principal atitude é tentar despertar a força interior da pessoa que está passando por uma dificuldade. É dar estímulo, promover sua alegria ou até aproveitar a raiva dela para direcioná-la na construção de uma nova vida. “Às vezes não basta dar acolhimento e condições materiais, se a gente não estimula o despertar do eixo interno emocional do outro, com entusiasmo e um referencial positivo do que pode acontecer no futuro”, diz o lama.

A compaixão verde é a do grito, da bronca, do basta. “Se vemos uma criança puxando uma toalha com uma caneca de leite fervente em cima e não gritamos, ela pode se queimar gravemente. Quando gritamos ‘Não faça isso!’, nós interrompemos uma ação negativa, para bem da pessoa. Isso também é compaixão”, afirma o lama Samten. A psicóloga paulista Maria Cândida Amaral afirma que isso é muito comum entre as famílias. “A compaixão pode ser exercida com brabeza, isto é, com-paixão, com emoção. E isso não tem nada a ver com sentimentos melosos”, diz. Qualquer mãe sabe disso. Às vezes o grito tem de ser forte, a bronca tem de ser enérgica para surtir algum resultado. A mãe pode fazer isso com o coração apertado, mas sabe que tem de fazer e que, ao se omitir, cometerá uma falha na educação dos seus filhos.

A última forma de compaixão, segundo prega o budismo, é a branca. “É a culminância desse sentimento. Nela oferecemos nossa própria natureza essencial, que é luminosa, amorosa e compassiva. Porque ainda que eu acolha com ternura, ainda que propicie meios, ainda que procure despertar a coragem da pessoa e que impeça sua negatividade, se não oferecer amor, todas as outras formas de compaixão ficam quase sem sentido”, conclui o lama.


Curar, aliviar, sentir

Bom, até aqui, vimos que existem diferentes formas de exercitar a compaixão, que esse sentimento pode ser vivenciado por qualquer um e que, para ser experimentado de uma maneira mais continuada, exige equilíbrio interno e, talvez, uma preparação. O budismo, mais uma vez, oferece um método excelente para esse treino: a meditação tong-len. Nessa prática, você inspira todas as dores e sofrimentos do outro, que às vezes passa pela mesma dor que você, para expirar esperança, alívio, amor e alegria. Quando praticamos o tong-len, fazemos um trabalho intenso com o ego, pois temos uma resistência natural a inspirar o sofrimento alheio. Até chegar um momento em que isso não tem mais importância.

A gerente administrativa paulista Maria de Lurdes Assunção Ferrari, por exemplo, perdeu o filho de 21 anos num acidente de automóvel e fez a prática para se recuperar da própria dor. “Meu sofrimento era tão grande, tão imenso, e me sentia tão impotente, que minha única saída era me irmanar com quem passava por isso. Inspirava a dor de todas as mães do mundo que tinham perdido um filho naquelas condições e expirava aceitação, paz, alívio”, conta. Não era mais seu infinito sofrimento, mas o sofrimento de todas as mães que cabiam na sua dor que, por sua vez, já não conhecia limites. Aí o coração se expande de forma verdadeira. Desaparece a separação entre nós e os outros, e tudo se torna apenas uma coisa. O sofrimento passa a fazer parte de um todo, não é mais apenas individual e tão pesado. Ao fazer a prática pelas mães que perderam seus filhos, Maria de Lourdes também a realizava por si mesma, pois estava irmanada na mesma dor. A aceitação e a serenidade que desejava às outras mulheres aos poucos foi tomando conta de seu próprio coração. “A união com outras mães era tão profunda que pensava que eu não existia mais, só aquele pulsar cheio de amor, ao ritmo da respiração.”

Hoje, muitos voluntários budistas ensinam a prática do tong-len para quem se sente imerso em sua dor, ou mesmo para quem está imobilizado numa cama. É uma prática que exige um coração compassivo, tanto que há 40 anos só era praticada por monges.

Também podemos fazer o tong-len por nós mesmos. Aliás, essa é a melhor maneira de começar: inspirando todos os nossos sofrimentos e mágoas e expirando purificação, alívio e perdão. Simon Luna, um dos maiores instrutores da tradição Shambhala, ensinava que podemos aprender a curar a criança ferida que temos em nosso coração com a prática do tong-len, inspirando sua dor e expirando acolhimento, carinho, ternura num cálido abraço. Pois quem mais precisa de amor e compaixão, nos passos iniciais desse longo caminho, somos, afinal de contas, nós mesmos.


Para saber mais

Livros:

• A Alegria de Viver, Yongey Mingyur Rinpoche, Campus-Elsevier
• Bondade, Amor e Compaixão, Dalai Lama, Pensamento-Cultrix
• Comece Onde Você Está, Pema Chödron, Sextante
• Por um Fio, Drauzio Varella, Companhia das Letras

Matéria publicada na Revista Vida Simples, edição de novembro de 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário