Fundamentos da Ética Espírita
Escreve: Reinaldo Di Lucia
Em: Setembro de 2011
1. INTRODUÇÃO
Toda consideração sobre a filosofia espírita leva, naturalmente, a indagações sobre o homem. Não só sobre sua origem e fim, mas também sobre suas relações com os demais entes do Universo, e, principalmente, com os outros seres humanos.
O homem é um ser social. Seu percurso terreno é essencialmente realizado em meio a uma sociedade, da qual ele faz parte e à qual terá que prestar contas, sobretudo por seu comportamento.
O ser humano vive em sociedade, convive com os outros seres humanos e, portanto, cabe-lhe pensar e responder à seguinte pergunta: Como devo agir perante os outros? Trata-se de uma pergunta fácil de ser formulada, mas difícil de ser respondida. Ora, esta é a questão central da Moral e da Ética.
Assim, não é à-toa que toda filosofia ou escola filosófica, em algum instante, necessite tratar sobre questões éticas. Seja sob este nome, seja falando em considerações morais, ou mesmo evitando estes termos – embora tratando de relações humanas. Na filosofia espírita não seria diferente.
Kardec, ao tratar deste tema, falou em Leis Morais. Sob essa denominação colocou as regras que tratam dos Espíritos e das relações entre eles. E colocou-as como parte da Lei Natural, aquela que rege toda a criação, na parte terceira de “O Livro dos Espíritos”, e o fez à moda científica, positivista, por analogia com as leis físicas que comandam a matéria.
Nesta análise Kardec tratou de questões fundamentais que, de algum modo, estão presentes em todas as filosofias: os conceitos de bem e mal, as origens da ação moral, os temas que, em sua opinião, eram os mais importantes. Por exemplos: progresso, sociedade, justiça. E, sem impor aos homens um comportamento padrão, propôs elementos para que ele pudesse pautar seus atos de acordo com os princípios espíritas.
Kardec, fiel à sua formação pedagógica, estruturou a terceira parte de “O Livro dos Espíritos” descrevendo, uma por uma, as dez leis morais. E também escreveu que esta era uma forma meramente didática de exposição, comentando explicitamente que estas leis não pretendiam ser exaustivas. Entretanto, o movimento espírita brasileiro normalmente as tomam como a última palavra sobre moral espírita, esquecendo que, por trás delas, há conceitos fundamentais de ética espírita que lhes deram origem.
O propósito deste trabalho é retomar estes conceitos fundamentais, derivando-os diretamente da teoria espírita e explicitando-os. A importância dessa retomada é restabelecer as bases da ética espírita, de um modo que possam servir como parâmetro à estruturação de um comportamento pautado nos princípios do Espiritismo, aplicável a todas as situações humanas, mas sem a imposição de um comportamento padrão que ignore as individualidades dos espíritos.
Para isso, o texto parte de uma pequena história da Ética e da Moral e discute, filosófica e etimologicamente, os conceitos a elas ligados. Em seguida, discute uma parte básica da ética: a teoria dos valores, propondo um conjunto dos essenciais para a doutrina. Finalmente, apresenta os fundamentos da Ética Espírita.
2. DISCUSSÕES SOBRE MORAL E ÉTICA
Mas o que é Ética? E Moral? É possível diferenciá-las? E como definir termos tão essenciais, mas tão complexos como Bem e Mal?
Iniciemos tratando da Moral. Segundo a definição do dicionário:
“Moral é aquilo que denota bons costumes, boa conduta, segundo os preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade ou por determinado grupo social; conjunto das regras, preceitos etc. característicos de determinado grupo social que os estabelece e defende”
A definição acima enfatiza o caráter relativo da moral: são costumes, condutas, regras e preceitos que são característicos de uma dada sociedade ou grupo social. E, como tais, variam enormemente, não só entre sociedades, mas, dentro de uma mesma sociedade, entre os diversos grupos, de diferentes tamanhos, que a compõem.
Há uma hierarquia nesta variação. Por exemplo, uma sociedade pode ser rígida quanto à questão da propriedade, mas liberal em termos sexuais. Também, pode haver famílias mais severas quanto à moral sexual, sem que deixem de fazer parte daquela mesma sociedade.
Esta relatividade moral ocorre não só no espaço, mas também no tempo. A moral de um dado grupo social varia com o decorrer dos anos, e costumes e regras que eram inaceitáveis passam a ser aceitos. Como uma mulher de biquíni tipo fio-dental seria julgada na sociedade brasileira do início do século 20?
Assim, a moral possui uma qualidade social, isto é, manifesta-se na sociedade, cumprindo uma determinada função, que é a regulamentação das relações entre os indivíduos e entre estes e a comunidade, visando a manutenção e a garantia de uma determinada ordem social.
Já a Ética:
“(...) é a parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social; em doutrinas racionalistas e metafísicas, estudo das finalidades últimas, ideais e, em alguns casos, transcendentes, que orientam a ação humana para o máximo de harmonia, universalidade, excelência ou perfectibilidade, o que implica a superação de paixões e desejos irrefletidos.”
Assim, a ética, diferentemente dos problemas práticos-morais, caracteriza-se pela sua generalidade. Ela define, de modo teórico, em que consiste o bem, o fim último visado pelo comportamento moral. Ao deparar-se com uma experiência histórico-social no terreno da moral — uma série de práticas morais em vigor numa dada sociedade —, a ética procura determinar a essência desta, sua origem, as fontes de avaliação, a natureza e função dos juízos morais. Pode-se dizer que:
“A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano.”
A ética e a moral relacionam-se, então, como uma ciência específica e seu objeto. É uma parte da investigação filosófica, não necessariamente especulativa. São importantes as contribuições do pensamento filosófico, desde a Antigüidade grega até os nossos dias. Todavia, um estudo histórico está fora dos limites deste trabalho.
3. VALORES ESPÍRITAS
Não há como falar em ética sem levar em consideração as bases sobre as quais seus princípios estão sustentados. Estas bases são chamadas valores.
Tidos como uma qualificação de objetos ou de seres, os valores não são propriedades dos objetos em si, mas propriedade adquirida graças à sua relação com o homem como ser social. Portanto, não há valores em si, mas somente em relação com um sujeito.
Além disso, os valores existem a partir de uma visão de mundo própria de cada sujeito. Nesta visão, incluem-se não somente os pontos de vista estritamente particulares, mas também visões sociais, religiosas, científicas, históricas etc.
Assim sendo, os espíritas estruturam seus valores com base em sua personalidade e crenças particulares, e, igualmente, naqueles que permeiam a filosofia espírita. Numa primeira avaliação, poderíamos dizer que estes valores estão relatados em algumas das Leis Morais:
Liberdade — O Espiritismo não prescinde de uma total liberdade de pensamento e ação, o chamado livre-arbítrio. Os espíritas sabem que o possuem, mas também que isto traz a total responsabilidade sobre seus próprios atos.
Tem o homem o livre-arbítrio de seus atos?
Pois que tem a liberdade de pensar, tem igualmente a de obrar. Sem o livre-arbítrio, o homem seria máquina.”
Justiça — Apesar da ampla liberdade de pensamento e ação, o Espiritismo possui um acentuado viés de justiça, definido como “respeitar os direitos dos demais” . Em última instância, esta definição leva, de alguma forma, à limitação das possibilidades de liberdade de ação do espírita. Uma outra argumentação, porém, é que a justiça faz parte da responsabilidade inerente à própria liberdade.
A partir destas bases axiológicas (isto é, de valores), e fazendo uma análise dos capítulos constantes na parte terceira de “O Livro dos Espíritos”, podemos começar a entender as bases fundamentais da ética espírita, seus fundamentos.
4. FUNDAMENTOS DA ÉTICA ESPÍRITA
Kardec não mencionou ética em sua obra. Mesmo quando se referia à investigação dos princípios que regem as ações humanas sempre citou moral:
“A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus.”
E, como definição de bem:
“O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe é contrário. Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a lei de Deus. Fazer o mal é infringi-la.”
Assim, a moral relacionava-se com a Lei de Deus. Ora, Kardec entendia o Universo como uma entidade criada por Deus e composta dualmente de Espírito e Matéria. E, da mesma forma como havia Leis Físicas que regiam a matéria, ele postulou a existência de Leis Morais que regeriam o Espírito. O conjunto de ambas essas Leis formava a Lei Divina, ou Lei Natural:
Deus
Espírito
Matéria
Leis Morais
Leis Físicas
Lei Divina ou Natural
E, para explicar quais seriam essas Leis Morais, Kardec didaticamente dividiu-as em dez, cada uma compondo um capítulo da parte terceira do Livro dos Espíritos: Adoração; Trabalho; Reprodução; Conservação; Destruição; Sociedade; Progresso; Igualdade; Liberdade; Justiça, Amor e Caridade.
Entretanto, esta divisão não é mais que uma exposição simplificada, com a finalidade de exemplificar, mais que explicar, os princípios morais do Espiritismo. Mas isto deve ser aprofundado para um entendimento maior das bases que levaram a eles. E é aqui que começa a tomar forma a Ética Espírita.
Uma análise ética do conjunto teórico das Leis Morais leva à estruturação dos fundamentos da Ética Espírita, a saber: a crítica espírita do juízo, o equilíbrio, a alteridade e a felicidade.
Por crítica do juízo entende-se o modo pelo qual se podem avaliar os atos humanos em função dos conceitos éticos, sendo absolutamente necessário uma vez que a moral só se completa na ação humana frente aos problemas da existência. Principalmente daqueles originados das relações entre os espíritos, encarnados ou não.
O Espiritismo estabelece um duplo critério para esta análise. O primeiro é o da intenção, expresso nas perguntas: Qual o objetivo do ato? A que ele visa? Qual seu fim último? Em suma, que intenção teve o agente com aquela ação?
Mas, como bem afirma a sabedoria popular, não bastam boas intenções para que um ato seja considerado moralmente adequado. Isto porque, apesar de bem intencionada, uma ação pode promover um resultado diverso daquele que pretendia. A doutrina espírita propõe então um segundo critério: o da utilidade. Ou seja: Qual o resultado do ato? A quem ele ajuda ou prejudica?
A combinação desses dois critérios forma a crítica espírita do juízo, e está integralmente presente, ainda que não com este nome, nos dois primeiros capítulos das Leis Morais:
“Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal?”
— “Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá portodo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”
E também:
“Têm, perante Deus, algum mérito os que se consagram à vida contemplativa, uma vez que nenhum mal fazem e só em Deus pensam?”
“— Não, porquanto, se é certo que não fazem o mal, também o é que não fazem o bem e são inúteis. Demais, não fazer o bem já é um mal. Deus quer que o homem pense Nele, mas não quer que só Nele pense, pois que lhe impôs deveres a cumprir na Terra. Quem passa todo o tempo na meditação e na contemplação nada faz de meritório aos olhos de Deus, porque vive uma vida toda pessoal e inútil à Humanidade e Deus lhe pedirá contas do bem que não houver feito.”
Um segundo fundamento é o equilíbrio, entendido classicamente, como a eqüidistância dos extremos. O excesso, seja pela ausência ou pela abundância, em qualquer aspecto da vida moral, leva necessariamente ao desvio ético:
“A lei natural traça para o homem o limite das suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é punido pelo sofrimento. Se atendesse sempre à voz que lhe diz - basta, evitaria a maior parte dos males, cuja culpa lança à Natureza.”
A ideia de que é preciso fugir dos extremos não é nova na filosofia. Aristóteles já a propunha, em seu “Ética a Nicômaco”, quando dizia que a tendência dos seres humanos é gradualmente atingir o equilíbrio após ser levado para distante dele, tal como uma vara de bambu, depois de vergada ao máximo e solta, oscila ao redor do ponto médio até nele permanecer.
Outro pensador a exaltar o equilíbrio foi Buda, que tinha o “caminho do meio” como uma de suas verdades nobres. Esta figura explica bastante bem o princípio da eqüidistância dos extremos.
E o melhor meio para cumprir este fundamento é agir sobriamente, com bom senso. E, principalmente, com muita reflexão, pensando e planejando bastante antes da ação. Como dizia Platão na República, “A vida irrefletida não vale a pena ser vivida”.
O terceiro elemento básico da ética espírita é o princípio da alteridade. Podemos conceituá-la, de modo simples, como a compreensão do direito dos demais homens à existência e a um modo de ser próprio. Significa, em última instância, a aceitação plena do outro.
Há uma diferença fundamental entre este conceito e o de tolerância, tantas vezes falado e exaltado nos meios espírita e cristão. Tolerar significa suportar as diferenças, ainda que delas discordando completamente. Entretanto, o posicionamento mental da tolerância não leva ao respeito à divergência e, assim, pode terminar com a explosão da negação e mesmo do ódio.
Quando se consegue substituir verdadeiramente a tolerância pela alteridade, respeitando e entendendo o direito do outro pensar e agir de modo diverso do nosso, as relações facilitam-se enormemente. Este é a verdadeira caridade, aquilo que os antigos gregos chamavam de ágape, o amor pelo outro.
Finalmente, o último fundamento da ética espírita é a felicidade. Ou seja, o entendimento de que o aprendizado só se dá na medida em que ele é acompanhado pela alegria. E que o conjunto de felicidade e de aprendizado é o único que leva à evolução.
Isso contrasta significativamente com a idéia vigente no movimento espírita de que só se evolui com sofrimento. E isto porque, normalmente, confunde-se isto com dor – conceitos que são bem diferentes.
A dor é inerente à existência – é inevitável. Seja ela física, como conseqüência dos problemas do corpo (doenças, envelhecimento etc.), seja moral, resultado dos erros que são cometidos ao longo da existência como espírito.
Já sofrimento é a falta da elaboração proveitosa da dor, que é o uso dos fatos dolorosos como elementos de aprendizado, a fim de entender as causas das falhas e evitar sua repetição. Quando as pessoas não fazem isso, sofrem, e as conseqüências são a culpa, a imobilidade e o desperdício das oportunidades.
Uma ética de felicidade, como a espírita, propõe que os fatos da vida devem ser elaborados internamente, visando introjetar e crescer. Ao aprender a fazer isso, o homem adquire a competência fundamental para a evolução: ser feliz. É por isso que a ética espírita é a ética da felicidade.
5. CONCLUSÃO
A definição dos fundamentos da ética espírita, da forma como foi feita acima, é obtida diretamente dos elementos kardequianos. Para ser feita, entretanto, é necessário encarar o Espiritismo como uma filosofia que, tendo por base a imortalidade do ser pensante e a evolução infinita, privilegia o crescimento individual a partir da convivência entre os espíritos. É preciso também aceitar que a finalidade última da encarnação é o aprendizado, e não o resgate de dívidas de vidas anteriores.
Esse entendimento da doutrina espírita enfatiza a busca da felicidade como método ético para a existência dos espíritos. Mas é preciso frisar que a felicidade, no sentido que está sendo utilizada, é completamente diferente do hedonismo, ou seja, da busca do prazer a qualquer custo.
Isto porque tal felicidade reforça ainda mais um conceito básico da filosofia espírita, o do livre-arbítrio. Somos livres para ajuizar sobre os atos da forma como queremos, para nos afastarmos dos excessos, para encararmos o próximo com alteridade, para elaborarmos produtivamente a dor. Ou não.
E esta possibilidade de escolha aumenta a nossa responsabilidade pessoal como espíritos que têm o controle da própria capacidade evolutiva. A partir do momento em que somos capazes de entender os fundamentos éticos do Espiritismo, só depende de nós mesmos que consigamos aplicá-los em nosso cotidiano. E assim não só trabalharmos para nossa própria evolução, mas também servirmos como exemplo para a evolução dos nossos semelhantes.
BIBLIOGRAFIA
KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”, FEB.
VÁZQUEZ, Allan. Sanchez. “Ética”, Civilização Brasileira.
COMPARATO, Fábio Konder. “Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno”, Companhia das Letras.
HOUAISS, Antonio. “Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa”.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. “Parâmetros Curriculares Nacionais: Apresentação dos Temas Transversais e Ética”.
Reinaldo Di Lucia, engenheiro químico, pós-graduado em Qualidade, professor universitário, foi presidente do Centro Espírita Allan Kardec, de Santos-SP, cidade onde reside. Expositor e articulista, é membro do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita - CPDoc.
E-mail: rdilucia@bol.com.br
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