terça-feira, 14 de julho de 2015

Pena ou Compaixão


Você já sentiu pena de alguém que está passando por sérias dificuldades? E de si mesmo? E daquela barata semi-esmagada, bem abaixo de seus pés, aguardando a última pisada? Ê tema complicado.
É comum que digamos estar sentindo pena de alguém. Não menos comum é ouvirmos que não se quer que ninguém sinta pena de si. Pena parece algo humilhante, ofensivo, dá entender que a pessoa está, digamos, acabada. De outro lado, quem sente pena, está sensibilizado, gostaria de ajudar, quer o bem da pessoa que passa por dificuldade. Não obstante a boa vontade, precisamos estabelecer importante diferença entre pena e compaixão.
A percepção de quem sente pena é de cima para baixo, de alguém que se acha melhor e mais forte – naquele particular momento – do que o outro de quem se tem pena. Mais que isso, a pena pressupõe que percebemos o outro incapaz de reagir, de conseguir erguer-se por si só. Por isso, a atitude de quem sente pena é exageradamente passional, mas nitidamente fora do foco, desviante, porque busca prestar solidariedade ao outro sem acreditar na força da pessoa em dificuldade. Pior que isso, geralmente quem sente pena traz no seu íntimo uma negação implícita de empatia, pois não raro confessa: “não queria estar no lugar dele”. Ora, como ter empatia, sem buscar a sintonia fina com a dor alheia? Isso gera atitudes distanciadas, humilhantes e reforça no outro a sensação de que ele é um coitadinho e que o problema que ele vai ter de enfrentar é um monstro horrendo e quase invencível, devorador de esperanças. De tabela, faz o outro se sentir perdido, incapaz e dependente da ajuda exterior, na medida que não lhe desperta o interesse de aprender e coragem de crescer com a situação.
Carl Rogers, notável psiquiatra americano já falecido, um dos precursores da psicologia humanista e criador da terapia centrada na pessoa, afirma que toda pessoa tem o que chamou de tendência realizadora, que nos conduz à luz interior, que nos arrasta para o crescimento. Rogers defende a tese de que todos temos as respostas para nossas inquietações e as potencialidades necessárias para resolvermos nossos problemas. Algo parecido com a afirmação crística de que o Reino dos Céus está em nós? Não é mera coincidência. Ter pena é, pois, negar a tendência realizadora do ser humano e sua capacidade de crescimento. Na doutrina budista, a compaixão é a pedra fundamental dos ensinamentos de Buda. O Dalai-Lama – líder espiritual do Budismo Tibetano - tem girado o mundo ensinando e defendendo que tenhamos uma vida mais compassiva. Nos últimos anos a ciência tem atestado inúmeros benefícios à saúde desse estilo de vida.
Com o estudo adiantado e sistematizado do que acontece no mundo dos espíritos, já sabemos que a lei do progresso preside o universo. Tudo avança. Todas as pessoas trazem em si o gérmen da evolução. Todas. Ter pena é subestimar, negar mesmo a lei do progresso.
A compaixão exige outra atitude. Ter compaixão é ser empático, ou seja, é nivelar-se com o outro, ombreando-o lado a lado, sem, contudo, carregá-lo. Por isso, imprescindível que se acredite nele e que ele também volte a acreditar em si e na vida, mesmo com suas naturais agruras. Geralmente pessoas que passam por grandes dificuldades têm afetados núcleos íntimos importantíssimos à essência humana, como a auto-estima, a auto-confiança, o amor-próprio, a fé, a capacidade de iniciativa e empreendimento, o discernimento crítico, o senso de oportunidade e de gestão, a capacidade de entregar-se e, principalmente, de amar. Ser compassivo é ajudar de forma eficaz a reconstrução dessa essencialidade, então desestruturada por um momento difícil. Veja que não disse que essas potencialidades se perderam. Disse que estão desestruturadas, embaralhadas entre sentimentos ambíguos e pensamentos confusos. O que Carl Rogers fazia? Escutava. Desenvolveu técnicas terapêuticas onde era muito mais importante ouvir do que dar conselhos prontos. Qual seu método? Algo similar a maiêutica socrática, ou seja, através de perguntas que conduzem o interlocutor às suas próprias conclusões. Através de suas técnicas, Rogers propiciava – sem pena ou dó, mas de forma compassiva - que a pessoa fizesse uma viagem para dentro de si mesma em busca de seu eu, de sua essência. Ouvir, respeitosa e inteligentemente, é apenas uma forma de ser compassivo. Quem tem pena, como dito alhures, quer distância, não deseja envolvimento, traz os conselhos embrulhados com lacinho e tudo, os doa ao coitadinho e tchau, quase sempre fazendo um discurso de entrega da salvação sobre seu próprio exemplo de vida. Paulo Freire – maior pedagogo que essa pátria pariu - sempre afirmou que a liberdade não pode ser doada, mas conquistada.
Mas de tudo, o mais perigoso mesmo é a autocomiseração. Trocando em miúdos, é sentir pena de si mesmo. Diria que é o resultado da impregnação do sentimento de pena que tanto recebeu dos outros, passando a hospedá-lo em seu íntimo e a comportar-se como um desgraçado. Outro dia acompanhei duas senhoras disputando desgraças. Uma falava de sua vida enfermiça, listando as intermináveis mazelas de seu corpo físico. A outra, para não ficar por baixo, alardeava as suas. Do cabelo ao coração, não teve órgão são (até rimou). Quando no final das contas o placar deu empate, deixaram as doenças e travaram combate no campo emocional. _ Por que a senhora não tem o marido que eu tenho. Eu sou uma desafortunada mesmo. Não?! Respondia a outra, cheia de argumentos. _ O meu é que é dose pra leão. Começa pelo ronco (neste momento devo admitir que quase intervenho, ronco não deveria contar ponto negativo, afinal, ninguém ronca porque quer. Já deu para perceber que eu ronco um pouquinho né...). Enfim, a fila andou e as duas seguiram suas lamentações. Exemplo de autocomiseração pública.
Em verdade a pena e a autocomiseração quase sempre se valem do que se chama em medicina de ganho secundário. Trata-se de comportamento que o doente passa a ter, alongando seu estado de enfermidade – muitas vezes inconscientemente – para continuar usufruindo ganhos que não tem quando em estado saudável ou porque não quer enfrentar os riscos da vida e prefere ficar ali parado, se fingindo de morto vivo. É a síndrome da barata semi-esmagada. Aquela mesma que você poupou a última pisada e quando foi procurar cadê? Fugiu para um lugar seguro, longe dos riscos da vida (Aliás, elas são invencíveis em nos enganar. Que técnica! Também ninguém tem pena, nem compaixão delas). Quer outro exemplo de ganho secundário? Mais atenção de amigos e parentes, doações de bens materiais, etc... Temos de nos questionar sobre o que está por trás disso? Especialmente do nosso comportamento. Será que só damos atenção aos outros quando há ameaça de perdê-los? Será que estamos ajudando o outro, quando fazemos tudo para que ele não enfrente a vida como ela é? Será que só somos caridosos quando estamos diante de tragédias? A resposta não é simples, mas um dos seus componentes, por certo é a culpa. Muitas das nossas ações são movidas por culpa, muito mais do que por amor, caridade ou compaixão. E muitos são os que sabem explorar esses sentimentos. Outro dia uma jovem, cerca de 30 anos, foi mais uma vez a uma instituição de caridade pedir ajuda. Já tinha aparecido relatando enfrentar várias doenças. Certa vez, apareceu inclusive cega. Desta vez inovou. Apareceu mancando com extremas dificuldades, apoiada em improvisada bengala de pau. Segundo explicou, tinha sofrido grave acidente. Precisava como nunca de uma cesta básica. Após receber a cesta, caminhou arrastando-se. O doador saiu à rua, segundos depois, e ainda pôde ver a jovem erguer-se ereta e firme, ao tempo que lançava ao longe a bengala e seguia lépida a seu destino.
O convite aqui, repise-se, não é cair na fácil tentação de se concluir que não se deve ajudar o pedinte ou para se julgar o mérito do ato da jovem, mas sua mensagem implícita. Por que ela estabeleceu este tipo de comunicação visando tocar o doador em algum ponto do seu ser onde estava alojada a culpa, parceira velada e mascarada da pena.
A verdadeira ajuda está em fazer com que o outro se redescubra e se reeduque como ser capaz de enfrentar sua própria história. Isto não se consegue com pena, só com compaixão.

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