Mito, Mística e Espiritismo
Sérgio Biagi Gregório
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito. 3. Histórico. 4. Sentido Profundo: 4.1. Retiro do Mundo; 4.2. Iluminação Súbita. 5. Sentido Figurado: 5.1. Mitos Filosóficos e Políticos; 5.2. Prática dos Mitos Modernos. 6. Espiritismo: 6.1. Mitos Criados pelos Espíritas; 6.2. Os Mitos sob a Ótica Espírita. 7. Conclusão. 8. Bibliografia Consultada.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os diversos matizes do mito, da mística e da mitologia, a fim de que o nosso pensamento possa melhor captar a dimensão racional da vida espiritual que a Doutrina Espírita nos faculta.
2. CONCEITO
Mito - do grego mythos significa discurso, narrativa, boato, legenda, fábula, apólogo.
Sentido profundo: descrições religiosas antigas, que expressam os modelos, os arquétipos da ação humana através dos atos originários dos "deuses" nos diversos campos. Nesse sentido, os mitos são narrações sagradas primitivas, dotadas de grande autoridade e normatividade para a vida humana.
Sentido pejorativo: uma narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Nesse sentido, "mito" eqüivale a engano, falsidade. Essa interpretação corresponde a uma mentalidade racionalista, para qual somente a razão é capaz de expressar a verdade. Hoje, no entanto, essa visão simplista está inteiramente superada, pois sabemos que muitos dos conhecimentos mais profundos e misteriosos são de tipo inconsciente e simbólico. (Idígoras, 1983)
Mística - do grego mystica, de myo, "eu fecho" os olhos, para me ensimesmar no meu íntimo.
Sentido profundo: ao contrário do conhecimento objetivante, base da ciência empírica e racional, as vivências místicas são uma forma de experiência psicológica, puramente subjetiva, por intuição ou "vidência espiritual", de natureza afetiva-extática, irracional. O místico vive o "numinoso", o contato e fusão do próprio Eu com o Ser absoluto, o Todo, o Cósmico, Deus.
O estado de êxtase acompanha-se de um estreitamento da consciência com eliminação e desinteresse por todos os estímulos e pelo mundo exterior real. A vivência do Alter ego, pela sua origem extra-consciente afigura-se como estranha ao próprio, vinda de fora, sobrenatural, divina.
Na Teologia Católica, as palavras misticismo, mística e mistério evocam a idéia de alguma coisa de secreto, que escapa mais ou menos à razão clara e não pode ser claramente divulgado ou expresso. S. Tomás define-o como "uma vista simples e afetuosa de Deus ou da coisas divinas". (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira)
Sentido figurado: dedicação passional aos mitos.
Mitologia - do grego fábula, lenda significa conjunto de mitos.
Sentido profundo: originariamente era o estudo sistemático dos mitos, que significavam uma narrativa fantasiosa da genealogia e dos feitos das divindades do politeísmo registrados nas teogonias. Como narrações imaginosas, distinguiam-se dos escritos propriamente históricos, pelo fato de não se enquadrarem dentro das coordenadas do espaço e do tempo histórico.
Sentido figurado: aos poucos, o termo se foi carregando de novos sentidos, entre os quais notamos os mais importantes: 1.º) explicações populares, espontâneas, isto é, não racionais, nem científicas dos fenômenos do mundo físico e social. Por exemplo: os raios são dardos flamejantes com que o deus do céu, Júpiter Tonante, descarrega a sua ira sobre a Terra; 2.º) a projeção, muitas vezes dramatizada, das grandes aspirações do grupo. Assim, um povo oprimido pela fome, cria mitos sobre uma era dourada de fartura e de paz. (Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo)
3. HISTÓRICO
No Extremo Oriente o caos primordial era concebido como um ovo; na mitologia indiana, como um vazio e informe, algo em permanente estado de repouso e indiferenciação; entre os gregos, como matéria desordenada e informe.
Segundo a compilação de Hesíodo, o passo inicial para a criação não se dá com a união dos elementos, mas exatamente através do processo inverso. Tal ocorre quando se rompe o caos para que a Luz (Aithér), sucedendo à Noite (Nýks), ilumina o espaço entre Gaia ou Ge (Terra) e Ouranós (Céu), e o mundo emirja com a aparição de Póntos (Mar), oriundo da própria Terra.
Os onze primeiros capítulos do "Gênesis" apresentam a criação do homem de forma mítica.
No processo histórico, temos lembrança de todo o arcabouço dos feitos dos deuses gregos, egípcios, romanos etc.
A explicação científica dos mitos começa com o antropólogo inglês Friedrich Max Müller (1823-1900) que considera os mitos como descrição poética de fatos da natureza (tempestades, terremotos etc.). A Antropologia moderna prefere a teoria da Claude Lévi-Strauss, que reconhece nos mitos o reflexo de determinadas estruturas sociais dos povos primitivos.
Na Renascença, Voltaire escreveu o seu Édipo (1718) para denunciar, por alusão, o poder do clero na França.
No século XIX, a mitologia grega não foi esquecida, mas um só de seus mitos parece ter ocupado a imaginação dos poetas: o de Prometeu, símbolo da rebelião, que é uma das características do século.
No século XX, registra-se surpreendente ressurreição dos enredos e personagens mitológicas gregas. O complexo de electra, por exemplo, é retratado nas obras de Hugo von Hofmannsthal (1903), Robinson Jeffers (1924) etc. (Enciclopédia Mirador Internacional)
4. SENTIDO PROFUNDO
4.1. RETIRO DO MUNDO
O retiro do mundo marca o modo e vida dos religiosos. Hugo de São Vitor distinguia cinco graus ascéticos: primeiro, lectio ou doutrina; segundo, a santa meditação; terceiro, a oração; quarto, a operação; quinto, a contemplação. Em França, no século XVII, funda-se o Oratório, uma instituição religiosa, cujo objetivo era não uma Doutrina Comum mas uma tendência comum para a vida interior e mística, concedendo aos seus adeptos a liberdade mais completa de reverenciar Deus. (Mendonça, 1975)
4.2. ILUMINAÇÃO SÚBITA
A iluminação súbita pode ser verificada pesquisando a biografia dos grandes pensadores. O filósofo Sócrates que viveu no século V a. C. teve seu insight depois de uma visita que fizera ao Oráculo de Delfos, quando, a partir daí, passou a ensinar o conteúdo da autoconsciência do homem. René Descartes (1596-1650) teve sonhos que lhe indicaram sua missão divina: construir o método para a nova ciência. O íntimo da maioria dos grandes pensadores mostra essa relação com o divino.
5. SENTIDO FIGURADO
Os mitos, no sentido figurado, estão situados entre a realidade objetiva e a fantasia. A realidade objetiva mostra o que a coisa é independentemente da observação do sujeito; a fantasia é uma criação mental que se distância da realidade. Nesse sentido, os mitos e a mística podem ser encontrados em todos os setores da atividade humana: na Política, na Sociologia, na Educação, na Economia, na Religião etc. isso acontece porque a maioria de nós prefere uma situação cômoda diante da vida.
5.1. MITOS FILOSÓFICOS E POLÍTICOS
Em termos filosóficos e políticos, podemos lembrar do existencialismo, do marxismo e do liberalismo. O existencialismo, por exemplo, atribui um valor absoluto à existência, quando a concebe em uma única vida, de 60, 70 anos, negligenciando a hipótese das vidas passadas. O marxismo convida-nos a construir a justiça plena e igualitária entre todos os homens, tendo por instrumento a luta de classes. Esquecem-se os seus propagadores que somos desiguais, necessitando níveis de renda desiguais. O liberalismo prega a liberdade, identificando-a com a espontaneidade; deixa tudo a gosto da subjetividade de cada consciência.
5.2. PRÁTICA DOS MITOS MODERNOS
Em termos práticos, anotamos o enriquecimento, a tecnologia, o sexo, a cultura etc. Na atualidade, somos impelidos ao enriquecimento e à obtenção de posição de destaque; caso não o consigamos, somos desprezados pelos detentores da riqueza. O avanço da tecnologia dá ao homem o domínio da natureza; ofusca-lhe, porém, o pensamento quando se considera como Deus ou mesmo superior a Ele. O sexualismo, uma reação contra o puritanismo de outrora, trouxe o sexo desenfreado. A obtenção da cultura transforma-se em mito quando transferimos as potências divinas para o exercício da inteligência humana. Na religião o que se vê é uma vasta idolatria, que deturpa os sentimentos mais nobres da mística verdadeira. (Lima, 1956)
6. ESPIRITISMO
O Espiritismo foi concebido dentro de uma ótica positiva, ou seja, baseado na observação e na constatação científica dos fatos espíritas. Nesse sentido, a estrutura dos seus princípios fundamentais não contém mitos e nem dogmas.
A Fé existe, mas é uma fé raciocinada. Quer dizer, cremos porque a nossa razão concebe racionalmente o motivo da nossa crença. Não é um sentimento transmitido pelos expositores da Doutrina ou mesmo por algum Espírito amigo, é uma percepção inata remodelada pelo logos que há em nós.
É possível que muitas pessoas taxem o Espiritismo de mitológico. Não resta dúvida que no meio espírita são muitos os que dizem professar o Espiritismo, mas nunca se debruçaram sobre as Obras Básicas de Allan Kardec. Antes de julgar, devemos analisar, pois a experiência histórica mostra que não foram poucos os cientistas que mudaram de opinião, depois de entrar em contato com o corpo doutrinário do Espiritismo.
Além do mais, há também, a transferência de imagens que a Sociologia nos ensina. Pertencendo a uma religião, não somos capazes de nos libertar de suas amarras, mesmo estando em outro nível de crença. No jargão popular diz-se que "levamos conosco o nosso baú"
6.1. MITOS CRIADOS PELOS ESPÍRITAS
Embora o Espiritismo não tenha mitos, nós, os Espíritas, criamos muitos deles em nosso dia a dia na Casa Espírita.
Vejamos alguns deles:
1) O Mito do Mentor: quando aceitamos passivamente as determinações dos nossos mentores não tendo o cuidado de analisar a mensagem, a informação sob o guante de nossa razão
2) O Mito do Trabalho Forte: quando nos deixamos governar pela ilusão, aceitando que tal trabalho espiritual resolveria melhor o nosso problema. Observe que a maioria de nós julga que o trabalho de desobsessão é infinitamente superior ao trabalho de palestra evangélica.
3) O Mito do Desenvolvimento Mediúnico: quando confundimos fundo mediúnico com mediunidade a ser desenvolvida, criamos problemas para aqueles que nos procuram pela primeira vez. Esse mito é muito freqüente, pois achamos que a maioria das pessoas é médium e tem que desenvolver a sua mediunidade.
4) O Mito da Pureza Doutrinária: quando só consultamos os livros da codificação, criamos um viés em nosso pensamento. Hoje há muitos ensinamentos trazidos pelos diversos médiuns espalhados pelo mundo. Negligenciá-los é perder parte da cultura espírita.
6.2. OS MITOS SOB A ÓTICA ESPÍRITA
Os princípios fundamentais da Doutrina Espírita fornecem-nos subsídios para tratarmos os diversos matizes referentes aos mitos, tanto modernos quanto antigos.
Observe o mito da criação: segundo a Bíblia, no princípio dos tempos Deus criou, simultaneamente, todas as plantas e animais superiores, a partir da matéria inerte. Deus, do pó da terra, forma o primeiro homem - Adão -, sopra-lhe as narinas e lhe dá vida. Retira-lhe uma de suas costelas e cria a Eva. Esta é tentada pela serpente e come, juntamente, com Adão o fruto proibido - a maçã. Literalmente considerada esta noção é mitológica e antropomórfica. Dá-se a impressão que Deus é um ceramista que manuseia os seres criados por Ele.
De acordo com o Espiritismo, o simbolismo bíblico pode ser interpretado da seguinte maneira: o pó da terra é a matéria, o corpo humano; o sopro é o Espírito. Quer dizer, para que um corpo humano tenha vida, ele deve ser animado por um Espírito.
Interpretemos, também, o modelo do pensamento místico à luz do Espiritismo. No capítulo I de A Gênese, Allan Kardec trata do problema da revelação divina. Diz-nos que a revelação direta de Deus não é impossível, porém faz-nos entender que a revelação é feita através da mediunidade, ou seja, pelos Espíritos mais próximos de Deus que pela perfeição se imbuem do seu pensamento e podem transmiti-lo. O codificador do Espiritismo pretende, ao analisar o caráter da revelação espírita, desmistificar a facilidade da obtenção do conhecimento divino. Diz-nos que a revelação espírita é de origem divina e da iniciativa dos Espíritos, sendo sua elaboração fruto do trabalho científico do homem. Procede da mesma forma que as ciências naturais: observa, formula hipóteses e tira conclusões.
7. CONCLUSÃO
Esperamos que a discussão dessas ideias possa abrir a nossa mente para uma melhor disposição de ânimo em ver o Espiritismo como ele é e não como gostaríamos que fosse. Se deixarmos de lado a nossa comodidade, o nosso ponto de vista pessoal, não só nos libertaremos dos mitos como também adquiriremos uma vasta cultura racional do conhecimento espírita.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ÁVILA, F. B. de S.J. Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo. Rio de Janeiro, M.E.C., 1967.
Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo, Encyclopaedia Britannica, 1987.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, s.d. p.
IDÍGORAS, J. L. Vocabulário Teológico para a América Latina. São Paulo, Edições Paulinas, 1983.
KARDEC, A. A Gênese - Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. 17. ed., Rio de Janeiro, FEB, 1976.
LIMA, A. A. O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo. 2. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1956 (Obras Completas XVIII)
MENDONÇA, E. P. O Socratismo Cristão e as Origens da Metafísica Moderna. São Paulo, Convívio, 1975.
São Paulo, 28/01/2001
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